domingo, 1 de maio de 2011

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esquecer
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. tem oitenta e sete anos. há dois não sai daquela cama. uma cama de pessoa só. com grades laterais de subir e descer. de um dos lados. como as camas das crianças mas maior. feita de encomenda e por medida.

a filha, mulher de sessenta e cinco anos, perdeu o marido vai para três. logo a seguir veio a doença da mãe. trata dela todos os dias. logo de manhã dá-lhe o pequeno almoço. muda-lhe a fralda da noite e lava-a. nunca se esquece de subir a grade, a mãe mexe-se, vira-se e cairia.

os dias correm sempre iguais, almoço, jantar, ver se está mijada e limpá-la. depois outro dia igual. e outro. e outro.

a mãe esqueceu já... não a conhece. quando a filha fala com ela raras vezes responde. compreenderá o que ela lhe diz? mas hoje, deitada como sempre, quando a filha lhe ajeitava a roupa,
durante segundos olhou-a e, sempre a olhá-la nos olhos, baixinho, um fio de voz, murmurou:


-a senhora é tão boa para mim. obrigada.
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4 comentários:

Humana disse...

mesmo sem que a mãe a reconhecesse, a filha deve ter gostado de saber que ela era sensível às suas manifestações de afecto.

abraço

Lizzie disse...

Senhor,
esta lei do eterno retorno à dependência é coisa de que culpamos Deus e o avanço da medicina.

É-se dependente quando se tem a vida toda pela frente, coisa tão festejada nos nascimentos, e o mesmo estado volta quando se deixou toda a vida para trás.

Tem a humilhação de todas as injustiças.

Contaram-me que uma tia avó disse aos 50 anos que não ia admitir não se lembrar do nome das filhas. Um dia não se lembrou e resolveu o assunto.

Mas já que é assim, muito falta fazer pela dignidade deste infeliz estado.
Muito me lembro da Suécia,por ex., onde se fazem espectáculos para plateias inteiras sem memória e onde os filhos podem também eles envelhecer descansados porque mais novos, especializados e com vigilãncia, se encarregam de mudar as fraldas e subir as grades enquanto para os descendentes fica já a árdua tarefa de pincelar o que resta com afecto.

Assim vos envio os meus grisalhos respeitos.

Justine disse...

Pungente este teu testemunho. Lancinante a vida destas duas mulheres.Fico silenciosa e comovida.

frioleiras disse...

o mal eé elas terem nascido em Portugal... Se calhar noutros sítios, mais a norte.... as pessoas não são (foram)tão consumistas e puderam ter mais ajuda nos cuidados aos seus.......

Por cá, ser velho é pior do q morrer. Os filhos e parentes (salvo raridades) raramente cuidam dos pais e, quando acontece, é com grande sacrifício dadas as dificuldades de apoio.